Eu disse que ela se tornaria um personagem.

Mal chegamos da igreja, estava a D. Maria tocando a campainha.

Posso trazer uma coisinha que preparei para vocês experimentarem?

Medo.

Minutos depois, entra a tia com uma travessa misteriosa.

– Ai, Deus. Que seja tudo menos gelatina nutritiva da cabeça da vaca.

Eram aperitivos de mexilhões e lulas.

Um prato de aparência estranha e odor exótico.

Nesse momento, Igor e eu nos olhamos e combinamos psiquicamente ser educados.

Mas a D. María não se satisfez em nos trazer o prato.

Pegou sua taça de vinho branco e sentou ali:

– Vou esperar vocês provarem. Quero ver se vão gostar.

Ela só iria embora depois que encarássemos a bagaça.

Vinho branco à mão, primeira garfada.

AMEI.

Sério. Imagine um prato de frutos do mar feito por uma tia espanhola que cozinha bem.

A cebola tinha um quê de caramelo; os mexilhões, um toque de limão.

Maravilhoso.

Eu me deliciava quando Igor interrompeu meu delírio dizendo:

– Que rico! Muito bom, D. María!

Fiquei feliz. Pensei que ele tinha gostado de verdade, como o bacalhau.

Só umas horas depois, depois de ser levemente obrigada pela tia a anotar a receita tin-tin por tin-tin, é que eu soube que meu marido é um excelente ator. E – definitivamente – detesta mexilhões.

Apresento-vos uma personagem que começará a fazer parte desta história: D. María.

Lembra que eu disse que demos um pedaço de bolo de maçã para a vizinha?

A própria.

A tiazinha é uma senhora provavelmente viúva, possivelmente catalã, e certamente única.

(«Possivelmente» catalã porque é muito mais simpática que a média da região, então desconfiamos que pode ter nascido em algum lugar mais legal da Espanha).

Mas o fato é que a figura é engraçada.

Hoje veio devolver o pratinho e pediu para entrar, toda fofa.

Trazia para nós um papel com todos os trens e metrôs de Barcelona e nos indicou passeios de bate-e-volta imperdíveis. Fez a gente anotar tudo: estação por estação; praia por praia.

Falava e riiiiia.

Perguntou se gostávamos de comidas diferentes.

Isabel – a que passa mal só de olhar para frutos do mar «estranhos» – quis ser educada e falou que amamos provar coisas exóticas.

Eu queria rolar de rir no chão quando a tia começou a descrever uma comida deliciosa que tínhamos que conhecer:

«Sabe a cabeça da vaca? Tem uma parte ali que se cozinha, que tem uma gelatina super nutritiva. Comemos junto com… como eu posso explicar…? Sabe a tripa da vaca? Mas não o intestino… É como se fosse a parte que sai leite, mas por dentro. É como uma tripa… Enfim, vocês precisam ver. É estupendo!».

Ah! Tem também o pulpo a gallega. Você compra o polvo fresco, mas não faz no dia, não. Congela. Tem que ficar no congelador por uns 3 dias no mínimo. Depois você cozinha, tempera, e na água do próprio polvo você ferve as batatas para acompanhar. Hum… Rico!

Quando vi a cara de ânsia da Bel, tentei sair pela direita: «Na verdade, gostamos mesmo é de paella. Aliás, eu adoraria aprender a fazer. A senhora sabe como é?».

Claro que eu sei! Posso fazer um dia para vocês verem! Aliás, melhor que paella é fideuá. É a mesma coisa, mas com um macarrão bem fininho… Você pega uma cabeça de merluza e faz um caldo bem bom…

Quando ela falou «cabeça de merluza» eu quase dei uma cambalhota de rir.

E aí parei de prestar atenção.

Sei que no fim das contas, trocamos um pedaço de bolo por um fideuá.

Será qualquer dia desses e, se a tia prometeu, eu acredito.

Com certeza vou amar a comida.

E, mais ainda, ver a cara da Bel e do Igor.

HAHAHAHAHAHAHAHA.